Natália Correia: A mulher que foi maior do que o país

 Há 30 anos Portugal acordou com a notícia da morte inesperada de Natália Correia, aos 69 anos. Com ela, perdia-se não apenas a autora de uma obra literária ímpar, como uma inteligência iluminada pela coragem cívica. Voltamos a Natália, no ano do seu centenário.

Estou a tomar uma bebida no bar do Hotel Britânia, sentada em frente a uma parede onde há várias fotografias de Natália Correia, luminosa como uma "estrela" do Cinema clássico, rodeada de pessoas, em festas que aconteceram há muito tempo. São fotografias a preto e branco, em que a poeta (como ela preferia que a designassem) aparece jovem, muito bonita, com uma altivez e segurança que não eram consentidas às mulheres portuguesas em plena ditadura. Evoca a época em que este mesmo lugar, na Rua Rodrigues Sampaio, em Lisboa, se chamava Hotel Império (um dos cenários da série da RTP, que cruzava as vidas de Natália, Vera Lagoa e Snu Abecassis) e era propriedade do terceiro marido da autora, Alfredo Machado. Os dois viviam nesta mesma rua, no número 52, e foi aqui que, há precisamente trinta anos, a mulher que assombrou todos os poderes e convenções do país, morreu de ataque cardíaco, a seis meses de cumprir os 70 anos.

Neste ano, em que também se assinala o centenário do nascimento de Natália Correia, com um vasto programa, que inclui, já na próxima segunda-feira, o lançamento em Lisboa da biografia O Dever de Deslumbrar, da autoria de Filipa Martins, importa perguntar o que celebramos com esta efeméride? A obra poética e literária? A resistente antifascista? A mulher que jamais se resignou com horizontes estreitos e de quem se pode dizer, sem risco de erro, que foi maior do que o país, pelo qual tinha um amor tão critico como lúcido e dorido?

Nascida na Fajã de Baixo (Ilha de São Miguel, Açores) em 13 de setembro de 1923, Natália de Oliveira Correia era filha de Maria José de Oliveira e Manuel de Medeiros Correia, comerciante, que cedo abandona a mulher e as duas filhas (a irmã mais velha, Carmen, nascera em 1921) e parte para o Brasil. Como a escritora recordará mais tarde em entrevista a Inês Pedrosa: "O meu pai abandonou-me em bebé nos braços da minha mãe, o que foi extraordinário, porque me rasgou o caminho para a liberdade. Eu explico: Nasci numa família terrivelmente ultramontana. A minha mãe reagiu contra essa educação de tipo repressivo e alinhava em tudo o que fosse na altura modernidade subversiva. Era uma mulher excecionalmente culta e nessa modernidade dominava então um espírito libertário e neopagão. A minha educação processou-se sob esse signo. Muito, muito novinha, ela deu-me a ler os clássicos do pensamento libertário e o primeiro contacto que me fez tomar com a ordem divina não foi cristão mas pagão."

Em 1935, a mãe e as filhas deixam a ilha de São Miguel e rumam a Lisboa. As duas irmãs, então adolescentes, são transferidas do Liceu Antero de Quental, em Ponta Delgada, para o Liceu Dona Filipa de Lencastre, em Lisboa. Em pouco tempo, a beleza de Carmen e Natália tomará de assalto a pequena e provinciana capital, a ponto do romancista Manuel da Fonseca dizer que, quando elas passavam na Rua Morais Soares, as árvores abriam alas a tal espetáculo. Mas, se nunca abdicou da sensualidade e da sedução (antes pelo contrário), Natália nunca fez delas um posto ou uma rampa de lançamento.

Criatividade multiplicada

Em 1946 publicou uma narrativa infantil, Grandes Aventuras de um Pequeno Herói. Nesse mesmo ano, começou a escrever poesia, dividindo-se (ou talvez multiplicando-se, tal era a pujança da sua criatividade) por géneros variados, desde a poesia ao romance, teatro e ensaio. Na poesia destacam-se, entre outras, obras como Rio de Nuvens (1947), Cântico do País Emerso (1961), O Vinho e a Lira (1966), Mátria (1968), As Maçãs de Orestes (1970), Poemas a Rebate (1975), Epístola aos Iamitas (1978), O Dilúvio e a Pomba (1979), O Armistício (1985), Os Sonetos Românticos (1990, Grande Prémio de Poesia Associação Portuguesa de Escritores) e O Sol nas Noites e o Luar nos Dias I e II (1993). Na ficção publicou A Madona (1968), A Ilha de Circe (1983), Onde Está o Menino Jesus (1987) e As Núpcias (1990) e, no teatro, O Progresso de Édipo (1957), O Homúnculo (1965), O Encoberto (1969), Erros Meus, Má Fortuna, Amor Ardente (1981) e A Pécora (1983).

Mas Natália não era uma intelectual de escrivaninha assente numa torre de marfim. Mulher de ação, numa época em que tal designação horrorizaria a sociedade, escreveu vários ensaios que expressavam o seu pensamento sobre Portugal e o mundo, como Descobri que Era Europeia - Impressões de Uma Viagem à América (1951), Poesia de Arte e Realismo Poético (1958), A Questão Académica de 1907 (1962), Uma Estátua para Herodes (1974), Não Percas a Rosa - Diário e algo mais: 25 de Abril de 1974 - 20 de Dezembro de 1975 (1978) e Somos Todos Hispanos (1988). Organizou também algumas antologias de poesia portuguesa, entre as quais Antologia da Poesia Erótica e Satírica (1966), que, como veremos, lhe trouxe problemas sérios com a censura do regime, Cantares dos Trovadores Galego-Portugueses (1970), Trovas de D. Dinis (1970), O Surrealismo na Poesia Portuguesa (1973), A Mulher (1973), A Ilha de São Nunca (1982) e Antologia da Poesia do Período Barroco (1982).

Muito jovem, adere aos movimentos de resistência antifascistas, como o MUD - Movimento de Unidade Democrática (1945) e as candidaturas de Norton de Matos (1949) e Humberto Delgado (1958) à Presidência da República.

A sua atitude de resistência passa ainda para a sua obra poética. Em Queixa das Almas Jovens Censuradas (mais tarde musicado por João Mário Branco) , Natália, com uma perceção única do que a rodeia, compreende que a ditadura é tanto uma violência politica e social como uma intrusão moral na intimidade de cada um: "Penteiam-nos os crânios ermos/com as cabeleiras dos avós/para jamais nos parecermos/connosco quando estamos sós."

Tertúlias vibrantes

Durante as décadas de 1950 e 1960, em sua casa, reunia-se uma das mais vibrantes tertúlias de Lisboa, onde compareciam as mais destacadas figuras das artes, das letras e da política (oposicionista) portuguesas e também internacionais. A partir de 1971, essas reuniões passaram a ter lugar no bar Botequim, do Largo da Graça, ainda hoje existente e consagrado à memória da sua fundadora.

Em 1966, em conjunto com Ary dos Santos, Mário Cesariny de Vasconcelos, Luiz Pacheco e o editor Fernando Ribeiro de Mello, foi condenada a três anos de prisão, com pena suspensa, pela publicação da Antologia da Poesia Portuguesa Erótica e Satírica, considerada ofensiva dos costumes. Em reação a esses acontecimentos, escreveria A Defesa do Poeta, onde se lê: "Sou um instantâneo das coisas/apanhadas em delito dd paixão/a raiz quadrada da flor/que espalmais em apertos de mão. /Sou uma impudencia a mesa posta/de um verso onde o possa escrever./Oh subalimentados do sonho! A poesia é para comer."

No princípio da década seguinte, reincidiria e seria processada por ter tido a responsabilidade editorial das Novas Cartas Portuguesas, de Maria Teresa Horta, Maria Isabel Barreno e Maria Velho da Costa, no processo que ficou conhecido como As Três Marias.

Por essa época, a reputação audaz de Natália já ultrapassava fronteiras. Em 1960, andando o escritor norte-americano Henry Miller em viagem pela Europa, perguntou quem deveria conhecer em Portugal. Responderam-lhe: Natália Correia. E foi assim que, em certa noite de tertúlia, sem aviso prévio, o homem que revolucionou a literatura erótica do século XX com obras como Sexus, Plexus e Nexus, apareceu na Rua Rodrigues Sampaio. Acabou a discutir amor e erotismo, madrugada fora, com a anfitriã e David Mourão-Ferreira.

De Sá Carneiro ao PRD

O 25 de Abril de 1974 foi, para Natália como para a generalidade dos antifascistas, um momento de intenso júbilo, mas não foi o fim da linha nem o repouso da guerreira Cedo, a poeta percebeu os obstáculos que se colocavam à construção da sociedade democrática. Entre 25 de Abril e 20 de Dezembro de 1975, em pleno Processo Revolucionário em Curso (PREC), manterá um diário sobressaltado, publicado com o título Não Percas a Rosa. O fantasma de uma ditadura pró-soviética assombra-a.

Por fim, persuadida pelo seu amigo Francisco Sá-Carneiro (de cujos amores com a editora Snu Abecassis será madrinha) integrará as listas de deputados do PSD à Assembleia da República. Passaria, no entanto, a deputada independente durante a legislatura quando, já depois da tragédia de Camarate, entrou em choque com as posições conservadoras em matéria de costumes do partido. A sua passagem pelo Parlamento ficou marcada pela irreverência e pelo génio. Para a História ficou o debate sobre o aborto, a 11 de novembro de 1982, pelo poema satírico lançado a João Morgado, deputado do CDS, que afirmara que "o ato sexual é para ter filhos".

Esquerda e direita não sabiam como classificar a parlamentar. A 6 de Junho de 1981, no DN, o jornalista Mário Ventura Henriques, conhecido pela sua proximidade com o PCP, perguntava logo na abertura da entrevista: "Há quem não perceba bem como você, que teve desde sempre, uma posição antifascista, se encontra agora integrada na bancada parlamentar da maioria?" A resposta, como era desejado, aliás, veio no mesmo tom: "Não quer dizer certamente que um antifascista não está bem sentado na bancada de um partido social-democrata? Ora vejamos, nunca pertenci à oposição marxista. Nessa altura, a oposição não tinha rótulos." Mais adiante, dirá: "Vi-me votada a esta anedota: Antigamente era comunista porque pertencia à resistência antifascista, depois, no tempo do gonçalvismo era reacionária."

Com uma consciência única dos movimentos da sociedade, Natália, numa das várias crónicas que então escreveu para o DN (A Democracia e as máscaras), mostrará o seu receio de que a crise financeira sirva de capa a outros retrocessos: "A sociologia do puritanismo recomenda que não tenhamos por fortuita a coincidência de se reinstalar sornamente o sambenito da queima puritana."

Acabaria por deixar o Parlamento. Em nova entrevista ao DN (cujo título era "A Missão da Mulher é Assombrar"), explicava, em Setembro de 1983, as suas motivações: "A minha entrada na política foi muito condicionada pelo objetivo de defender um estatuto cultural na Assembleia da República. Eu não entrei na Política pela Política". Sobre a sua saída do PSD, diria: "(...) Sou imprestável para partidos (...) Só aceito a disciplina quando me demonstram que ela é uma necessidade ética ou criadora."

Conheci pessoalmente Natália Correia na quinta-feira santa de 1992, tinha eu 24 anos, e apenas porque uma colega do JL (onde então trabalhávamos) me pediu que a acompanhasse numa entrevista em casa da poeta. Como era voz corrente no meio, a sua lenda intimidava os mais ousados entrevistadores. Assim aparecemos nós, a Maria Leonor Nunes, o fotógrafo João Ribeiro, veterano do seu ofício já na época sócio nº 1 do Sindicato dos Jornalistas, e eu própria, em casa de Natália quase à hora de jantar. A Maria Leonor gravava e eu tomava notas, explicando previamente à entrevistada que preferia escrever (hábito que me passaria mais tarde) a recorrer ao gravador. Natália gostou disso e aconselhou-me a preferir sempre a intuição aos registos mecânicos de palavras e gestos. Menos de um ano depois, morreu de forma súbita. Nos meses que se seguiram, era lancinante ver o seu viúvo, o poeta Dórdio Guimarães, sentado à mesa da pastelaria Smarta (que ficava no piso térreo do prédio onde vivia) cada vez mais perdido, até à sua própria morte, aos 59 anos, em 1997.

Voltei, uma derradeira vez a essa casa, depois da morte de ambos, quando a amiga do casal, Helena Roseta, organizava o espólio. Lá estavam, como órfãos, os vestidos comprados em Paris, as luvas, os livros, os retratos e os autorretratos, muitos Cristos, vestígio da nunca recusada religiosidade de Natália. Os objetos falavam-me da menina frágil guardada no relicário da mulher forte, maior do que a vida. A que ela deixara entrever no poema Auto-Retrato"Por vezes fêmea. Por vezes monja./Conforme a noite. Conforme o dia. //Aranha de ouro/presa na teia dos seus ardis. / E aos pés um coração de louça/quebrado em jogos infantis."






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